terça-feira, 30 de novembro de 2010

Depois do jantar é uma hora complicada

O Inverno estava em casa, na casa dele, já que a casa de cada um é o lugar que deixamos.


E depois, depois do jantar é uma hora complicada, está feito, acabou, e agora ?não há desculpas ou se fica ou se vai, ou se quer ou não se quer, ou se diz ou se cala. Sem sacudir as migalhas fui para o sofá azul, o que foi o criadouro das quatro estações, chegou a casa no dia em que o verão cá chegou, depois dois dias do verão ter chegado.

Estava em casa mas de partida. Sentámo-nos no mesmo sofá, um em cada ponta. Só de estarmos os dois sentados na hora depois do jantar os olhos brilharam-me, mas não deu para ver, estávamos a olhar em frente, como se nada fosse, para o mesmo lado. Mãe, vou a Lisboa. Eu já sabia, para sentar no sofá na hora depois do jantar alguma razão havia. Eu já sabia, não ia aquecer o lugar muito tempo. Pisquei os olhos, apaguei o brilhozito, mas não deu para notar, continuava a olhar em frente. A Câmara abriu um concurso de ideias e vou concorrer, tenho de ir ver os terrenos, são dezasseis terrenos, dezasseis projectos, dezasseis prémios.

Há um prémio para cada terreno, vou concorrer aos dezasseis, pode ser que os ganhe todos.

Sorri para dentro, mas também não dava para ver mesmo que fosse para fora, continuávamos a olhar na mesma direcção, este rapaz não cresce. E vou apresentar cada um em meu nome e no nome de um amigo. Senti umas cócegas no umbigo, continua a ser um derretido, gosta de dividir as coisas boas, multiplicar ideias, somar optimismo, subtrair complicações.

Apeteceu-me pegar-lhe ao colo, dar-lhe um beijo na ponta do narizinho, o mais pequeno da família, como talvez o da minha mãe. Fiquei muda e quêda, a derreter-me.

Mas a ideia é fazer umas cenas provocadoras. Parei de me derreter, comecei a ficar curiosa, mas em vez de o demonstrar perguntei, e quanto vais gastar nessas cenas?

Não sabia, mas os prémios iam dar para cobrir. Quero pôr lá uma réplica da Casa da Música, em ponto pequeno. Eles gostam, já lá têm a réplica do Corcovado, da Golden Gate...

Essa era boa! Dei uma gargalhada, por dentro ! Gosto de provocações, embora as faça raramente, quer dizer, em grande não as quero fazer, aborrece-me aborrecer pessoas, mas das pequenas talvez faça todos os dias, não sei, ou fazia, isso sim.

Ele não ouviu a gargalhada mas talvez percebesse, porque me sentei em cima duma perna, fiquei desinquieta, foi o que foi.

Se tu tiveres alguma ideia, para alguma coisa que gostasses de ver construída em Lisboa...nessa onda provocatória, eu topo.

Aí parti-me toda. Tirei a perna de baixo do traseiro, refastelei-me de lado e perguntei : A sério? Queria ouvir qualquer parvoíce minha, dava importância às minhas maluqueiras.

Ora diz lá então, tens outros alinhavados? Tinha: um arranha céus de apartamentos T zero para arquitectos desempregados, uma casa debaixo da ponte 25 de Abril, revestida a folha de ouro para residencia oficial dos Reis de Espanha, e por aí fora.

Mudei de sofá, ficámos de esguelha, a noventa graus. Queres mesmo que te diga? Porque não fazes um prédio à maneira, com recepção tipo Grand Hyatt e terraço com vistas, com salões de chuto privados, para os que podem pagar e não se querem misturar com os pelintras, os arrumadores, os desempregados, as prostitutas baratas ?

O coração apertou, e se ele me diz que é mesmo uma palermice ou pior ainda se achar e não me disser? Queria que ficasse contente, que percebesse que eu entendia o que lhe ia na cabeça cheia de caracóis.

Senti um friinho por baixo das gémeas, enquanto o via mudar os pontos de apoio de um para o outro lado, empurrando os óculos para cima. Essa é boa !

E foi à vida.Depois do jantar, mas já depois da hora depois do jantar sacudi a toalha, e acabei a noite em paz.

Fez esses todos mais uma prisão para dirigentes desportivos com dezoito andares. Acho que é o número de clubes na primeira divisão. E uma clínica de luxo com dois edificios separados por uma alameda, de um lado Maternidade e Planeamento Familiar e no outro Interrupção Voluntária da Gravidez, que Aborto é para indigentes, e já nem sei que mais.

Passa o tempo passa. Esqueci-me dessa hora depois do jantar, porque outras horas na cabeça me foram perturbando os pensamentos e as horas depois de jantar.

O concurso, esse foi andando, e dos dezasseis prémios só recebeu um, com a sala de chuto. Foi projectada para um terreno vazio em frente à Assembleia da República, fachada em espelho onde a tal era reflectida, não sei se perceberam a ideia. E com um terraço com vistas, para os fumadores, porque tabaco lá dentro nem pensar.

Cerimónia da entrega, mesa redonda com o Goulão e o Padre Maia, entrevistas para aqui e acoli. Levaram a coisa a sério! Fala disto e daquilo, das ONGs e das IPSS e do trabalho que é preciso fazer e acontecer. Mas faltam os euros para construir as tais salas de chuto para os pobrezinhos. Ai ele é isso? Provocação vai, provocação vem, propõe ao Padre que seja ele a vender a droga, assim já tem euros para as salas, que se deixe de trêtas, ou vai comprar onde?

Ó mãe não sejas tão maluca, achas? olha eu não acho nada, aquilo foi uma brincadeira séria e agora é uma brincadeira brincadeira? Aí levantei o sobrolho mesmo, só um, o que dá um ar mais mafarricóide, tipo Jack Nicholson no feminino.

Bem, da sala de chuto passaram à encomenda de uma escola para um Musseque em Luanda. Ainda não o pagaram, nem a querem fazer, melhor ainda até pagam para que não se faça mas isso é outra história, desconfio que ainda vai ser ele a pagar a escola, com a ajuda do Sr. 50. E os Musseques passaram a tema para o mestrado e para o doutoramento. E a sala de chuto para ricaços valeu o prémio da American Architects Assotiation, e eu apareci de surpresa para a cerimónia da entrega, aí confesso que com um sorriso de orelha a orelha por dentro e por fora.

E hoje, quando vinha através da chuva desenfreada regressar a casa, o lugar que deixei, fiquei a pensar como pequenos momentos podem alterar a nossa vida. E como pequenas coisas nos podem modificar. E eu sem dar conta. E eu a dar conta. Bem sei que já na ida eu ia a magicar, muito. E fico a pensar quantas vezes pisquei os olhos para apagar um brilho, quantas vezes só sorri para dentro, quantas vezes cruzei os braços para disfarçar um frio nas gémeas, umas cócegas no umbigo.

Porto, 28 e 29 de Novembro de 2010

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Cheguei tarde, porque nasci antes do tempo

Nascer antes do tempo, foi isso que me aconteceu. Não que estivesse menos do que os dez meses lunares na barriga da minha mãe, não, nisso não me adiantei.
Mas agora que muito tempo já passou desde esse dia em que entrei no quarto que continuaria a ser o meu por mais vinte e seis anos, penso nisso. É isso. Devia ter esperado uns anos. Teria agora outros tantos mais para flanelar por cá. Estaria mais leve, não só no sentido literal do termo, mas mais leve também estaria a minha forma de usar as conexões neuronais, porque há pouco vim a saber que afinal tudo se pode explicar por essa via. E as outras conexões também, pois por mais que me digam e me expliquem, e por mais que eu até o subscreva acima, eu, talvez por ter nascido antes do meu tempo, não posso acreditar que tudo se resuma a neurónios, vias neuronais, mediadores químicos e inibidores.
Com frequencia pensava no tempo que perdi para trás, se tinha perdido ou não, se o balanço deve/haver era positivo ou negativo. Vejo agora que afinal o tempo perdido está para a frente. Um ligeiro adiantamento emocional, ou um ligeiro atraso pessoal, devido ao atraso da hora em que nasci. Confusa, acho que não
Adiantada emocional ou atrasada pessol , o resultado vai dar ao mesmo, estou fora do tempo.
Não que chegue atrasada no dia a dia, aí esforço-me.
Não gosto de me fazer esperar, gosto de aparecer na hora certa. Mas no realmentre importante, não consigo. A minha hora não está certa pelo meu relógio. Se apareço às 3 horas do dia 19-11-2010, devia ter aparecido às 3 horas mas do dia 19-11-2000, ou vá lá, 2002 ou 2004. Isto é, tudo devia ter acontecido antes. Cheguei tarde, porque nasci antes do tempo.