segunda-feira, 17 de maio de 2010

O Porto, a Ponte de D. Luis e o Metro



Quem é do Porto vai entender-me.

Quando não existia a ponte da Arrábida o regresso ao Porto tinha de ser feito pela ponte D. Luís.

E depois era mais prático entrar pela da Arrábida, mas tínhamos a possibilidade de fazer mais uns km, mais uns minutos no carro e podíamos, se quisessemos, ter aquela emoção de ver o Porto aproximar-se lentamentente, ou nós a aproximarmo-nos lentamente do Porto.

E mesmo  que a ausência não tivesse sido muito longa, era sempre bom sentir aquela imagem silenciosa, tranquila e impávida a acolher-nos. Uma estrutura sólida, densa, na qual sentíamos que íamos entrar e ficar lá dentro protegidos, como se voltássemos ao útero da nossa mãe.

Agora, só de Metro. Não é a mesma coisa!
Como foi que ficámos despojados de podermos emocionar-nos com a visão do Porto a engolir-nos no regresso a casa?



posted by morpau # Sábado, Março 18, 2006 em http://www.city-scape.blogspot.com/

domingo, 16 de maio de 2010

Eu quero leite mumêlho!


O Ribeirinho era colega de liceu do meu irmão, e daí passou a ser também amigo dos meus pais e meu. Casou com a Lita, de quem a minha mãe gostava muito.

Às tantas tornámo-nos todos coproprietáros de um terreno em Lavra, à beira mar, cuja legalização, ao fim de trinta anos, ainda não está resolvida. Eles eram mais velhos, já com três filhos, bem na vida, mas não sei bem como resolvemos ir os quatro ver in loco umas casinhas que estavam à venda em Pedras del Rei, junto a Tavira.

Viemos de lá entusiasmados, local bonito, praia boa, grandes relvados com oliveiras, casas simples e baratas.Quando regressámos saiu no jornal uma convocatória para uma Assembleia Geral dos proprietários, e lá vai o Ribeirinho e o José, para perceberem o que se passava: afinal estava tudo encravado ou hipotecado, ou qualquer coisa, e vai daí perdemos a oportunidade de podermos dizer, sem mentir, vou para a minha casa no Algarve.

Mas gostámos tanto do local que esse ano alugámos uma casa, e lá fomos, na 4L, para Tavira.Já eramos quatro, embora o Inverno fosse ainda escondidinho na minha barriga, não dava trabalho nem despesa, mas fazia boa companhia.

Dessa vez fomos com outros amigos: a Ju, o Manuel e a Ana.

A Ju e eu éramos muito amigas da Bé, que nessa altura namorava com o Boavida (ás vezes era mais Mávida...) , que tinha um lugar cativo no Piolho. Emprestou-nos uma canoa pneumática para podermos navegar na ria.

Parece-me que a casa só tinha um quarto, não me lembro bem, mas também em casa estávamos pouco.

Para a praia, havia um comboiinho do aldeamento que levava e trazia os hóspedes. Muitos tias e tios, todos conhecidos, (já eram habitués), mas quando o comboio chegava estourava o verniz com um grande estrondo, e há que empurrar, passar por cima, saltar em andamento, atropelarem a minha muito digna barriga, para garantirem um lugar sentado naquela viagem de cinco minutos. Aquilo chateava : estar à espera, levar encontrões, não ter lugar sentado, paarecia que estavamos à espera do 500 para o Bolhão.

Aí saiu a canoa do Boa à baila : de carro até a ria de Tavira, lançar a canoa à água, meter lá dentro a lancheira, as toalhas, os guarda sóis, os brinquedos, as bolas, umas cadeiras para as madames, as sacas com os livros, os copertones, as mudas de roupa para as princesas.

E todas as manhãs à ida, e tardes á vinda , repetíamos a história do rapaz , a couve e o burro, só que em vez de três personagens eramos seis. Parece-me que nunca fizemos as travessias da mesma forma e que ao fim de quinze dias ainda não sabíamos qual a melhor solução.

Chegados ao areal esqueciamos os precalços e as discussões, estendiamos as toalhas, abriamos os guarda sois, soltavamos as miudas, e há que gozar do luxo de ter quilometros de praia só para nós.Só para nós não é bem o termo, porque às tantas os participantes do festival de teatro que decorria em Tavira descobriram também o paraíso. Como verdadeiros artistas, não tinham problemas em integrarem-se no cenário natural, e como tal dispensavam o uso de peças de vestuário.

A partir daí, achava a Ju, os elementos masculinos da nossa trupe passaram a fazer longos passeios a pé pelo areal, junto ao rebentar das ondas, durante os quais, em vez de olharem para o mar, iam com o pescoço torcido para a esquerda á ida, e no sentido contrário à vinda. Lá isso era verdade.

Então, um dia, quando estavam a cerca de trezentos metros do acampamento, pescoço torcido para a direita, resolvemos tirar a peça de cima da nossa farda de banhista, e desatarmos aos berros, e aos saltos, acenando como desesperadas aos nossos queridos conjuges.

Bem, a Ju saltava maais, porque o Inverno já pesava um pouco.Ainda bem que a minha mãe tinha feito um biquini que acomodava a barriga mais ou menos, pois assim pude também fazer bandeira com a parte de cima. Parecíamos as feministas americanas a descartarem os sutiãs ! De seguida atiramo-nos ao chão de tanto riso, porque eles não sabiam que fazer: davam uma corridinha, paravam, faziam gestos a explicar o que deviamos fazer para recuperarmos o decoro. E entretanto olhavam à volta, à procura de espectadores para a comédia.

Para sobrevivermos manhã e tarde, levávamos sandes, fruta, iogurtes, água e etc.. Mas eram muitas sandes, para quatro matulões na força da vida passarem um dia, sendo que dois faziam grandes caminhadas e longos banhos, e uma comia por dois. Além disso de manhã sabia bem pãozinho fresco para o peqqueno almoço, mas não havia padeira à porta.

Ao chegar da praia, depois do banho, enquanto o jantar se fazia,também sabia bem uma saladinha com uma cervejinha, ou sumo de limão.E enquanto punhamos a mesa e davamos banho às princesas, os lordes latas iam descansar para o relvado, debaixo das oliveiras, ouvir música Resultado, as duas madames ao fim de três dias estavam fartas de ir ao supermercado, montar a linha de montagem de sandes, fazer saladas, cozinhar jantar, arrumar a cozinha. Discutido o assunto ao serão, ficou decidido que cada um teria a responsabilidade de tratar de tudo, um dia à vez : compras, sandes, cozinha, arrumação.

Fiquei surpreendida, pela positiva, com a habilidade do Manuel , que nos apresentou ao jantar um frango de supositorio!afinal de contas tinha vivido sozinho uns tempos, e teve de fazer pela vida...

Seguiu-se a Ju, cujos méritos eram sobejamente conhecidos por todos, e a minha pessoa , que só por modéstia não digo que sou uma cozinheira e dona de casa maravilhosa.

E ficámos os três a esperar o que o dia seguinte nos traria, já que era também bem conhecida a falta de conhecimentos, nessa área , do outro elemento adulto da pandilha. A solução improvisada foi no entanto muito sensata: deu-nos a cada o subsidio de alimentação da função pública, já que todos trabalhavamos para o estado, e dessa forma resolveu o problema e sacudiu o trabalho...

As miúdas davam-se bem, a Ana mais velhinha, brincalhona, bem disposta, e a Zu a entrar nas casa dos vizinhos “olá homem, como é que te chamas?”. Delirava com uma mistela com sabor a morango, que punhamos no leite do pequeno almoço, e que estava sempre a pedir “eu quero leite mumêlho!”

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Luar tropical

Ontem tive um serão de cavaqueira até às tantas com alguém que conheci há uns bons 17 anos, numas férias.
No Expresso vinha um pequeno anúncio do Club dos Jornalistas, sobre uma viagem ao Brasil.
O José resolveu contactar, para saber se aceitavam inscrições de não sócios. Como tal era o caso, o programa era aliciante e o preço baixo, lá nos juntámos ao grupo.
Como nós iam também muitos outros penduras, mas todos eles tinham algum tipo de ligação à direcção ou a sócios do Club : mulher, filha, irmão, cunhado, mãe, amigo, marido....Acho eu que só nós eramos uns verdaeiros outsiders.
O programa incluía Recife, Porto de Galinhas, Natal e João Pessoa, com mais alguns passeios a partir desses locais.
Na altura o Cruzeiro ou Real, (já não me lembro), baixava de hora a hora, e como tal ninguém queria trocar muito de cada vez. Também não se usava por aquelas bandas, naqueles tempos, Visas nem Amexes. O câmbio de rua era mais favorável , para os turistas e para os cambistas informais. Com a habilidade nata dos brasucas para criarem neologismos, ali esses chamavam-se doleiros.

Grande parte dos que iam de carava connosco, talvez por estarem bem informados demais, eram muito receosos de tudo e, claro está, também em relação ao transporte de valores. Não queriam andar com dólares nos bolsos, não queriam comprar muitos Reais ou Cruzeiros (já não me lembro) de cada vez.
Havia pois um dilema colectivo: ir comprar Reais ou Cruzeiros (já não me lembro), a um doleiro favorável , levando os dólares no bolsoe e arriscando ser assaltado nos quinhentos metros que o mais próximo distava do hotel, ou cambiar no hotel, e perder alguns escudos nessa transacção.
Claro que esses alguns escudos variavam com a fúria aquisitiva das respectivas cônjuges e com a capacidade de auto-controle relativamente ao consumo de produtos locais de variada espécie, que deixo à vossa imaginação.

Graças à iniciativa privada de um jornalista com espírito emprendedor, merecedor de uma menção honrosa no concurso de “Novas Ideias de Negócio”, o pessoal passou a andar muito mais relaxado e tranquilo.
O tema da conversa de pequeno almoço deixou de ser como está o dólar, onde se poderá trocar, farão assaltos à beira do hotel, e passou a ser onde vamos hoje, alguém conhece, que fizeram ontem à noite, quem quer ir para a praia.
É que logo a meio do primeiro dia o repórter do jornal “O Crime” já tinha o negócio montado: à porta da sala do pequeno almoço recebia as encomendas, pegava nos dólares, ia a correr encontrar-se com o doleiro da sua confiança, e antes que tivessemos tido tempo de comer as mangas, o abacaxi, o mamão, o mingau, a canjica, o beiju com goiabada, com creme de leite, com manteiga, o cuscuz, as panquecas, o queijo grelhado, os pãezinhos de queijo, e bebido o suco de acerola, de maracujá, de umbu, e o café, já ele estava de volta, com os bolsos do colete de fotógrafo recheados de notas de Reais ou Cruzeiros (já não me lembro), a um câmbio intermédio entre a candonga e o oficial.Que caramba, não gostei de me lembrar de jornalistas com colete de fotógrafo.

E lá íamos todos em manada dar continuidade ao nosso plano: aproveitar ao máximo o investimento.
Vários dias, quase todos, havia um passeio de autocarro, com ar condicionado, guia local, e hora marcada para saír. Ou melhor, havia dois, dado o número de excursionistas.
Uma guia era nova, gira e simpática a outra era velha, feiosa , simpática e muito profissional.
Claro que o grupo se dividiu: num autocarro os que tanto se lhes dava se era feia ou bonita ( ie, mulheres, e casais...) e no outro os que preferiam uma guia girassa ( eram os mais numerosos).
A coisa complicou-se quando também foi preciso dividir o grupo entre fumadores e não fumadores, entre os pontuais e os que chegavam sistematicamente atrasados, entre os que enjoavam e não enjoavamam, etc.
O que dificultava mais a coisa é que havia alguns que acumulavam várias condicionantes:eram parte de um casal, mas preferiam a girassa (“a gorda não é tão culta”), chegavam sistematica tarde, mas tinham de ocupar o lugar da frente porque enjoavam, eram fumadores mas queriam ir no autocarro dos não fumadores a fumar, porque não gostavam do cheiro dos cigarros dos outros.

Uma das penduras era economista, trintona, solteira, loura mas pintava a risca de preto, ia com a mamã, conversava com a mamã, comia com a mamã, ia no banco ao lado da mamã, ficava na praia com a mamã.. Uma manhã, que eu sou muito sensível aos fusos horários, levantei-me às cinco e resolvi ir para a praia, que estava ainda deserta. Enganei-me. Ao chegar perto dos últimos arbustos ouço uns sons humanos misturados com as ondas, e qual não é o meu espanto veja a loura ás cambalhotas na rebentação, com um companheiro de viagem , que agora é crítico de arte.
Ainda bem que não obrigaram a mamã a ir para a praia tão cedo, mas eu achei melhor não mostrar que também tinha insónias, voltei para trás e fui descansar mais duas horitas.

O Mário trabalhava para a Lusa, e dizia que ia em trabalho para investigar o caso de um portugues que tinhga desaparecido no Rio de Janeiro, que toda a gente sabe que é mesmo ali ao lado do Rio Grande do Norte. Naquela altura era uma pessoa com dificuldade em resistir a tentações, como tantos que eu conheço e já conhecia.
Vai daí, num jantar oferecido, toca a comer camarões, aos quais já sabia ser alérgico. No dia seguintre de manhâ o companheiro de quarto veio pedir-nos se o podíamos ir ver, porque estava todo inchado e com dificuldade em respirar. . Não sei como, mas já sabiam que tinham dois médicos a bordo.
Realmente estava esquisito, com um grande edema da face , que poupava o lábio inferior e o queixo. Já tinha feito o diagnóstico, queria apenas remédio rápido, porque queria ir ao passeio que devia começar dali a quinze minutos.
Como não fui capaz de o demover de ir para o calor, apanhar sol ,disse-lhe que tinha de tomar uma injecção intramuscular de cortisona, além doutras medidas.
E lá fomos nós para o passeio com aquele doente por tratar. Avisado o motorista, paramos numa localidade de risca ao meio, junto da farmácia, para adquirir o fármaco, a seringa e a agulha.Aí o Mário começou a tremer, se tinha mesmo de ser injecção, se doía, se a sabia dar, se ia doer, que era alérgico a injecções, e todas essas cenas a que já estava habituada a ver em alguns doentes.
Tranquilizei-o o melhor que soube, e o rapaz da farmácia disponibilizou os fundos para fazer a administração da dita injecção.
Os fundos eram pouco fundos, e estavam ocupados com estantes tipo dexion, cheias de medicamentos. Assim sendo não dava para deitar o paciente, olhe, vai mesmo em pé, baixe as calças se faz favor. Ele assim fez, ficou a segurá-las com uma mão, não fosse baixá-las mais do que era preciso, e com a outra mão a segurar a estante.
Espeto a agulha no sítio certo, e de imediato o Mario larga as calças, não larga a estante, e cai redondo no chão com os medicamentos e a estante por cima, a agulha , a seringa e eu por trás.

Bem, o meu início de actividade clínica no Brasil foi um bocado caricata .
Do Recife fomos para Natal, mais peripécias com o hotel, em frente à praia interior e fracote, aquele grupo de pelintras no qual nos incluo a quererem um hotel no mínimo de quatro estrelas, e toca mudar para outro, depois da guia, a girassa, se ter desfeito em prantos por nunca ter sido tão maltratada, dizia ela entre os soluços.
Depois do jantar, ânimos acalmados, fomos nos sentando na esplanada virada para o mar , apenas iluminada pelo luar de lua cheia, com o barulho das ondas mansas como música de fundo.
A certa altura alguém disse “luar assim, só na minha terra”, a que o Jose respondeu “ só na sua não, na minha também”, “ai isso é que não, como na minha não é de certeza”, “está enganada, na minha ainda é melhor”. Aí a iniciadora da polémica levantou-se e perguntou “ “ai sim, e onde é a sua terra?” “ São Tomé” respondeu o José, “ah, és o Zezinho? Ainda não te tinha reconhecido!”.
Já não se viam há alguns anos, mais de vinte, mas voltaram-se a encontrar num lugar longínquo, que pelos vistos lhes era familiar.

Fico sempre emocionada com estes acasos do destino, acho que são momentos mágicos, e se a dar-lhes cobertura há uma lua cheia, então milagre de certeza.

E foi assim que eu conheci a Isabel, com quem passei ontem um rico serão.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A minha vida anda à volta de CAIXAS


Dentro de algumas semanas comemoro o sexto aniversário da minha abertura da CAIXA da Pandora.

Pensava que era apenas uma lenda grega, mas não, é real, só que no meu caso quando abri a CAIXA deixei como na lenda, que todos os males se soltassem, mas não fui a tempo de guardar a esperança. Mas tenho atenuantes: nunca houve um Epimeteu que me avisasse que não a devia abrir.

Ainda agora, ao fim de tanto tempo, continuo à procura da CAIXA preta, que possa revelar o que de facto aconteceu.

Às vezes fico a tentar abrir uma CAIXA de diálogo, tempo perdido.

Essas CAIXAS não faziam parte de uma colecção de CAIXAS que já tive, e talvez ainda tenha, mas assim de repente não sei onde estão.
Não sei como começou, mas fui juntando CAIXAS de bolachas das freiras de Santo Tirso ou lá para a beira, CAIXAS de bombons Regina, CAIXAS de sabonetes Confiança , CAIXAS de pó de arroz Madeiras do Oriente, CAIXAS de creme Bela Aurora, CAIXAS de pastilhas de mentol, CAIXAS de terços benzidos, CAIXAS de rapé, CAIXAS de fósforos, CAIXAS de latão, de estanho, de cartão, de prata, de tecido, de papier maché, de marfim, de alabasto, de vidro, de cristal, CAIXAS grandes , pequenas, feias, bonitas, pirosas, CAIXAS dadas, compradas, roubadas.

Enquanto estavam cheias não eram de colecção, só quando ficavam vazias tinham direito a essa classificação. Depois já podiam voltar a ser cheias, serviam para guardar coisas miúdas, botões, fivelas, colares rebentados, sobras de rendas, amostras de croché, amostras de tricô, clips tortos, pioneses sem espigão, missangas e lantejoulas, lápis sem bico, esferográficas com carga seca, canetas sem tampa, tampas sem canetas.

Algumas, as mais vistoas, nunca tinham servido para nada, nunca foram cheias. Na realidade, pensando bem, eram umas autênticas inúteis, não tinham nada dentro, terão sido feitas para decorar, mas na realidade o que faziam era estorvar e atrapalhar o uso das mesas ou móveis onde estavam colocadas,

Essas fui-as arrumando umas dentro das outras, dentro de gavetas, das gavetas para os armários, dos armários para a garagem, a tal que ainda não consegui arrumar.

Nunca consegui deitá-las fora, embora ocupem um espaço que podia ser melhor utilizado. Esqueço-me delas, mas de repente, quando vou procurar alguma coisa, tropeço nelas.

Quando a garagem ficar arrumada de certeza que essas CAIXAS vão sair de cá de casa.

Das outras, as que estão cheias de pioneses sem cabeça, botões velhos, amostras de croché, ainda não vou conseguir desfazer-me.

Mas há muitas mais CAIXAS na minha colecção, (já me têm dito que sou uma CAIXA de surpresas, embora desconfie que não é grande elogio): já fui médica da CAIXA, às vezes não dou duas para a CAIXA...costumava andar sempre a toque de CAIXA, (isso era no tempo em que era Amélia) mas agora acalmei. Outras vezes é a minha cabeça que é uma CAIXA de ressonância!

Há tempos descobri que não via nada do que se passava ao perto, e há alguns meses descobri que também não via bem ao longe, foi então que me tornei uma CAIXA de óculos.

Por vezes a CAIXA de ar queixa-se, mas eu não ligo.

Quando era pequena gostava de ser CAIXA de um banco, pensava que eram pessoas que davam dinheiro a quem pedia, santa inocência. Também gostava de ouvir o barulho das moedas a caírem na CAIXA de esmolas da igreja, no mês de Maria, quando ficava hipnotizada pelas ladainhas em latim.

E o meu primeiro ordenado depositei-o na CAIXA, já lá vão 36 anitos.Continuo cliente da CAIXA, e agora vou passar a receber a reforma, na CAIXA.

Desde que tenho um Prius com CAIXA automática, não consigo guiar um carro de CAIXA manual! E pensar que durante 25 anos passei os dias a meter mudanças.

Nunca dei grande importância à CAIXA do correio, até porque pouco ou nenhum correio recebia, daquele que teria gostado de receber. Com o aparecimento da net, e suas CAIXAS de correio electrónico, descobri como é fácil com um clique enviar, receber, reencaminhar e responder, e como é mais difícil excluir definitivamente.

Agora, para adormecer a Rosa, que me diz ao ouvido avó, tu és fantástica, vou dar corda à CAIXA de música que o Inverno lhe ofereceu.

30-01-2010, Lua Cheia

segunda-feira, 10 de maio de 2010

A cidade mais feia do mundo

ESMERALDAS

De férias no Equador! Um sonho de criança revelou-se realidade. Afinal eram reais as fotografias da National Geographic, vistas e revistas vezes sem conta. Ou seriam as recordações das aventuras do tin-tin?Não interessa, o importante é que ali estava eu, naquele país inacessível com floresta amazónica, montanhas intransponiveis com vulcões cobertos de neve como nos desenhos animados, com ilhas povoadas por seres estranhos e felizes (iguanas, tartarugas,pinguins,todos em feliz harmonia como se estivessem ainda no jurássico).

E como corolário , para retemperar as energias gastas em tanta novidade e tanta emoção, uns dias numa praia quase deserta, próxima de uma aldeia de descendentes de escravos fugidos aos espanhois,refugiados na costa do pacífico, onde conseguiram sobreviver dedicando-se à pesca.

Mas tanta natureza também cansa, e a tentação de visitar uma cidade desconhecida, a poucas centenas de Km foi aumentando, enquanto a tosta ao sol aguçava a curiosidade, e a imaginação arranjava motivos dignos das aventuras lidas no Cavaleiro Andante para justificar aquele nome tão apelativo: "ESMERALDAS"!

Seria o local de um tesouro escondido?, haveria minas de esmeraldas que só alguns iniciados conhecessem e se tivessem esquecido de revelar?

E assim, o apelo do nome, e a vontade de conhecer a cidade ,sobrepuseram-se ao prazer de emitar as iguanas ao sol e os lobos marinhos na água.

Aproveitando a boleia na caixa aberta de uma camionete igual à da série americana Viver no Campo, conduzida por um galego que se perdeu e foi dar àquela costa, lá partimos entusiasmados com a perspectiva de conhecer Esmeraldas.

E foi uma emoção indescritível. E espero que seja também irrepetível.

É que Esmeralda foi nesse dia classificada como a cidade mais feia do mundo. Não pode haver pior. Nem mais feia, nem mais desordenada, nem mais porca, nem mais inóspita, nem mais desorganizada, nem mais perigosa, nem mais nada.

É o prinicipal porto exportador de petróleo do Equador,está rodeada de refinarias, e os contrafortes dos Andes que a ladeiam a leste foram completamente desflorestados para plantar bananeiras. Há Km e Km de terra cobertos pelas sacas azuis de plástico que utilizam para cobrir os cachos de bananas antes de os cortarem.

A entrada da cidade é anunciada por dezenas, isto é, centenas de abutres que fazem voo razante sobre os visitantes enquanto se aproximam da lixeira a céu aberto que ocupa centenas de metros da berma da estrada e que em algumas partes a invade. E ao levantarem voo voltam a saudar-nos de perto, mas aí já com o bico e/ou as patas ocupadas com restos de animais que os açougues aí depejam (tripas, peles, eu sei lá mais o quê).

O cheiro nauseabundo é ampliado pelo calor dos trópicos, e tudo isto apreciado de uma caixa aberta de uma camioneta ridícula e a ameaçar desfazer-se nas curvas, e a tentar em vão desviar-se dos buracos, tem outro impacto!

Entrando no perímetro urbano, a orientação é difícil, nem dá para entender para que lado é o porto, o centro, ou o mercado.

Só mesmo o Galego de que já esqueci o nome nos podia orientar, já que é lá que se abastece para o restaurante que tem na praia, mas o homem não foi de guia turístico, só nos fez o favor de nos dar boleia. E tinha mais que fazer, comprar camarão descascado, peixe fresco e fruta.

Bem que nos avisou, bem que achava estranho querermos ir a Esmeraldas.

Desapeados da camioneta, lá fomos perguntando aos autóctones, que tão admirados estavam de ver estranhos a querer visitar Esmeraldas, que até se esqueciam da pergunta, isto é, de nos dar resposta à primeira, mas lá fomos sabendo que o mercado é muito perigoso para estrangeiros.

O porto é inacessível. O centro não é identificável.

O transito é caótico. Os passeios quando existem estão a 50 cm do pavimento das ruas, que está esburacado

O comércio era o equivalente ao refugo , ou melhor ao saco do lixo dos armazéns chineses da zona industrial de Vila do Conde.

Depois de bebermos qualquer coisa num restaurante que era também o posto do correio, lá nos encontramos com o nosso motorista, e encetámos a viagem de regresso, partilhando a caixa aberta com os víveres. Foi a sorte dele, porque os defendemos com toda a nossa força e argúcia dos abutres que nos esperavam à saída da cidade.

E nessa noite, revendo a experiência no areal morno de Muisne, elegemos Esmeraldas como a cidade mais feia do mundo.

sábado, 8 de maio de 2010

Do Algarve a Tarifa, passando por Sevilha e Torremolinos - 1978


Uma semana na Praia da Oura, outra a viajar pelo Sul de Espanha. O sol do sul é a sério, a 4L com ar condicionado à abertura das janelas. O Verão já pedia para fazer o número um, foi a minha mãe que lhe ensinou, fizemos uma festa à volta do peniquinho com o o primeiro que não foi para as fraldas.

As fraldas eram de algodão, fui comprá-las, já com uma grande barriga ,ao armazém de uma fábrica de Pevidém, lavava-as à mão com sabão da CUF. Na Oura ficavam a corar na mesa da varanda, secavam ao sol, e voltavam a ser usadas, por precaução, apenas durante a noite. Depois descobri sabão em pó em pacotes de duzentos e cinquenta gramas, à venda numa loja pegada ao Sá da Bandeira, acho que também vendia tapetes,e passei a lavá-las à máquina. Mas há sempre alguém com gosto pelas novas tecnologias, que gosta de nos dar conselhos, e eu, feita burra, não querendo ficar atrás, comprei um pacote de fraldas de papel para levar para as férias. Triste ideia.

Na viagem para o sul de Espanha, pelo sim pelo não resolvi por fraldas à bonequinha, de papel, o que resultou num rabo vermelho e cheio de espinhas. Como tudo tem uma solução, as fraldas de papel foram para o lixo, nunca mais voltaram a entrar no carro ou em casa, nem para ela nem para as outras três estações do ano. Para resolver o problema de uma urgência miccional comprámos um pote de plástico, que estava sempre à mão, e em caso de necessidade eu saltava para o banco de trás, tirava o Verão da cadeira e passava-a para o dito, com o carro parado ou a andar, conforme a urgência e a possibilidade de estacionamento.

E lá fomos andando até Sevilha. Tanto calor só voltei a sentir vinte e um anos depois, em Death Valley. Por esse motivo houve que procurar e pagar um hotel com ar condicionado, que só condicionava o sono com o barulho que fazia, mas não arrefecia a temperatura ambiente. Pobre Verão, mesmo a dormir pedia áuua, áuua, que lhe ia dando aos golinhos, pelo bimbão.

Que guardei mais na memória desses dias em Sevilha? os biqueirões fritos que comemos na rua, estaladiços, salgados, gordurosos, um verdadeiro manjar dos deuses. Nunca mais pude repetir esse prazer.

Daí seguimos viagem. Na estrada em Nenhures e Coisa Nenhuma, uma recta de quilómetros no sol do meio dia, a 4L parou e não mais tugiu nem mugiu .Há que pedir boleia para os três e mais alguma bagagem até à bomba de gasolina que tínhamos passado há alguns quilómetros. Eu estava embrulhada num sari de seda que no ano anterior o J tinha surripiado dentro das calças, de um armazém em Andorra. Bem, não era o sari todo, porque entretanto fiz dele uma echarpe, uma túnica, um lenço e uma saída de praia, como dizem os brasileiros. Não contava ter de sair a público no interior da Andaluzia naqueles preparos. Chegados à bomba, nova boleia até uma oficina onde o mecânico fez o diagnóstico à distância, tirou uma bobine doutra 4L acidentada, trocou-a pela danificada e a questão ficou assim resolvida.

Entretanto eu e o Veão tinhamos ficado na sombra do chiringuito da bomba, dei-lhe um flan, aúa, e aguardámos. Só muito mais tarde surgiram os telemóveis, que naquela ocasião eu teria usado, sem daí obter qualquer resultado prático: os andulezes que por ali estavam esparramados, barriga a rebentar os ilhoses dos cintos , entretiveram-se o resto da tarde a dizer ordinarices e a tecer comentários à minha situação e roupagem. Acho que nunca me senti tão mal.

Resolvido o problema retomámos o caminho.

O Tor era um rapazinho simpático, educado, bem disposto e rico, conjunto de qualidades dificil de encontrar numa pessoa só, primo do Ed, e  tinha casado há pouco tempo. Foram passar ferias no Mare Nostrum, perto de Marbelha e combinámos  fazer-lhes uma visita. Hotel de luxo, pelo menos pareceu-me, piscina sobre o mar sem praia, mais mergulhos, mais pirulitos, mais comentarios simpáticos, que graciosa, que mona, e nós todos contentes.

Não voltei a ver a mulher do Tor a não ser no dia do seu enterro em Barcelos, em resultado de um acidente de automóvel, não me esqueço do Tor a chorar na igreja, mas naquele tempo eu não avaliei bem o sofrimento dele, ainda não tinha passado por perdas tão dolorosas Pouco tempo depois foi o Tor que partiu com uma leucemia, que desgosto. Lembro-me muitas vezes dele, a rir-se no Mare Nostrum, a chorar em Barcelos.

Alguns anos depois fui trabalhar para Barcelos, às quintas, dia de feira, mas isso são outras histórias, agora não quero pensar em Barcelos, nem nas viagens para Barcelos, nem nas boleias para Barcelos, nem nas manhãs de sábado nem nas tardes de terça.

Os meus pais tinham ido de autocarro para Torremolinos, e tinhamos combinado encontrarmo-nos lá com eles, iamos tentar ficar no mesmo hotel que eles já tinham marcado. Chegaram tarde, coisa anormal. O motorista tinha morrido atropelado ao atravessar uma avenida. Férias estragadas, por uma vida perdida, não há pior motivo para serem estragadas.

E as recordações do P voltaram. O P era primo dos meus primos e enquanto primo dos primos nunca tivemos grande empatia. Tinha mais um ano do que eu, andava no D. Manuel, na turma do Raul , do Pessegueiro e do Quelhas. Constituiram-se num grupo contestatário, usavam boina preta e lenço de algodão ao pescoço, o que na altura era uma grande ousadia e uma demonstração de não quererem fazer parte do mainstream, isto é da carneirada amorfa da época. Entrou para medicina em mil novecentos e sessenta e oito, como eu, e a partir daí passamos a conversar mais. No início das férias, fim dos exames da primeira época, encontrámo-nos na piscina de Leça . Ele tinha feito as disciplinas todas, queria ter férias até Outubro, porque as ia passar com a namorada francesa. Saía do Porto à boleia no dia seguinte, rumo a Espanha, e o objectivo era encontrarem-se em Algeciras, donde iriam juntos até Marrocos. Nunca se encontraram.
Acampou em Torremolinos onde por coincidência estava um médico do Porto, conhecido das mesas do Piolho, a quem contou os seus planos de viagem. Morreu nesse dia atropelado ao atravessar a mesma avenida. O médico estranhou deixar de o ver, a tenda vazia, procurou informações na polícia. Tinham um corpo por identificar , atropelado sem documentos. Foi enterrado sem avisarem a família.

No fim das ferias, regressado ao Porto, e às mesas do Piolho, contou este episódio aos que estavam presentes, entre os quais uma prima do P. E foi desta forma que a família soube da sua morte. A namorada tinha ficado à espera, pensava que ele tinha deixado de querer estar com ela. Foi a mãe, irmã da minha tia Mi, que procurou no quarto a direcção e lhe explicou o motivo da ausência.

Que pena que tenho que isto tenha acontecido. Por isso não quero ouvir falar de Torremolinos.

Do regresso a casa já não me lembro, podia inventar mas não me apetece, há tanta coisa real para contar. Só me lembro da passagem por Tarifa. Chegámos à noite, um vento de morrer. Ainda éramos amadores, não levávamos o Lonely Planet, só o Guia Michelin desactualizado, que para dormidas não presta. Demos umas voltas e acabámos por conseguir um quarto aceitável, a um preço suportável. Mas quando o homem viu que tinhamos o Verão não nos quis deixar ficar, com medo que ela molhasse a cama. Foi preciso implorar, jurar que tal não aconteceria o que se veio a verificar. De manhã fomos até à praia, não gostei, senti medo não sei de quê. Talvez pressentisse que se viria a transformar em cemitério de homens, mulheres e crianças que procuram uma vida melhor, lutam por ela, e são enganados, explorados, destruídos. Acho que sei o que sentem. Não quero voltar a Tarifa.

Naquele momento gostei das férias, mas agora já não. Poucas são as boas lembranças afinal.

Do Alentejo esqueço-me de Arroiolos e só recordo Grândola e interrogo-me sobre o porquê de ter sido posta na mesma mesa que a “retornada “ do Bairro de Francos.

 O Hotel da Aldeia é agora um monolito perdido na selva de Albufeira. E por isso nunca mais o encontrámos e não pudemos voltar a fazer ferias num hotel do Algarve. Nos Olhos de Água já não há esplanada. A dona Emilia já não faz lampreia de ovos. A praia de Tarifa é agora um cemitério.

O Tor e a mulher morreram há muitos anos, eu perdi a foto do Verão a abrir a janela da 4 L, o J já não rouba saris para me dar.

Deixei as fotos numa caixa, dentro de uma gaveta, dentro do guarda fatos da Primavera, nunca mais as vou encontrar. Talvez o Inverno as peça para fazer um projecto de uma escola numa praia do Algarve, com vento de Tarifa, onde se possa chegar sem parar em Arraiolos nem recordar Grandola, com um terraço de onde sirvam sopa de peixe e lampreia de ovos, com camaleões nas baldroegas dos canteiros.

Ou talvez vá encontrar as braçadeiras que o Verão usava para dar os mergulhos, quando for capaz de arrumar o armário do sótão onde o Outono encontrou a camisa de noite que eu usava em Prien, e que vai usar agora como vestido.

As primeiras férias em família e o perfume das buganvílias - 1978



600Km até ao Algarve, o Verão com 15 meses, a 4L ainda nova.
Comprámo-la com o dinheiro que ganhei a fazer dois períodos de caixa em Mancelos: pagavam os quilómetros e o tempo perdido, mais quatro horas de consulta equivalente a trinta doentes, os que via a mais eram pagos em volumes de Português Suave ao Sr. Faria.

Pelo caminho recebia galinhas, meia duzinha de ovos, biscoitos, uma saca com batatas. Agradecia, oferecia boleia, mas não dava para ficar à conversa porque a partir das cinco e meia não se via nada e o posto não tinha luz eléctrica. O vizinho tinha, e emprestava uma gambiarra, mas para passar pela janela esta tinha de ficar aberta e o frio não se compadecia.

A sala de espera que era também a recepção, estava separada do consultório por uma parede de madeira com um metro e oitenta de altura, e acabava a um metro e vinte do telhado sem forro. Não dava também para aprofundar histórias, partilhar segredos, porque até entrarem no consultorio eram espectadores, melhor dizendo ouvintes, divertidos e crueis. Ao passar a porta transformavam-se em confidentes confiantes, esqueciam o papel de ouvintes. Eu ia falando-lhes ao ouvido, entregava por escrito os conselhos mais delicados.

Como é que daquele vale profundo saiu o Amadeu?

Aguentei o Inverno todo. Fiquei com um lençol de linho, com o cheiro do musgo, a fotografia gravada das curvas da estrada de terra e cascalho a entrar com timidez naquele lugar escondido, o Mosteiro ao fundo.

Quando juntei que chegasse para trocar o Fiat 127 esgotado, deixei. Nunca mais lá voltei, mas quero voltar.

Comprámos a 4L novinha em folha, côr de café com leite, janelas de abrir para cima, alavanca das mudanças muito engraçada.

A primeira grande viagem foi ao Algarve, uma emoção : carro novo, filha nova, ferias num hotel!

600Km não se faziam de uma assentada, e dava para visitar o Sr. Beja e a D. Emília.

Eram anos de guerra e os rapazes não a queriam. Salvo raras excepções como o do Bairro de Ramalde, filho da Espanhola, tinha a mania das fardas, de andar aos tiros. Ofereceu-se para ir para Angola, morreu em combate. Agora a rua onde morava tem o nome dele: Rua Furriel x, heroi de Angola, mas a maioria não queria a guerra e muito menos ir para a guerra.

Nessa altura havia quem tivesse contactos, fosse influente, e conseguisse livrar os rapazes, a troco de dinheiro. os pais endividavam-se, envergonhavam-se, suportavam tudo para proteger os filhos. Outros levavam-nos de carro até França, ficavam desertores, como fez o Sr. Belo ao filho, que depois casou com uma chilena. Tinha um salão de cabeleireiro na Rua dos Carmelitas, com duas paredes paralelas forradas a espelho. Enquanto a minha mãe fazia a permanente eu tentava adivinhar quantas imagens iguais mas cada vez mais pequenas conseguia contar. Foi aí que descobri o infinito.

O Sr. Beja tinha um afilhado que foi alistado. Queixou-se de dores num joelho e mandaram-no para o Hospital Militar do Porto.Um dia apareceu em nossa casa, com uma carta do padrinho, a pedir ao meu pai que o livrasse da tropa! Como havia de não o tentar depois da forma como ele e a D. Emilia nos trataram naquele dia em que o carro avariou e os homens nos deram água por uma concha ? Como às vezes iamos fazer compras ao Casão com um cartão emprestado, falou à menina da drogaria, que pediu a um sargento, e o afilhado ficou livre! o meu pai tinha a certeza que o rapaz tinha aquele joelho todo escangalhado, porque pela cunha não tinha sido . Bem, o que é certo é que foi uma alegria: o Sr. Beja veio ao Porto e trouxe-nos um conjunto de garrafa e seis copos em barro, forrados a cortiça e liquens, mais piroso não podia ser, mas manteve-se sempre em lugar de destaque no louceiro. Além disso ofereceu-nos uma ida ao Sá da Bandeira, para vermos uma revista. E a amizade ficou assim reforçada.

A viagem até ao Algarve com paragem no Alentejo, em Arraiolos, para pernoitar. A D. Emília tinha agora um restaurante na bomba de gasolina, que o marido continuava a explorar, e que foi construído com o dinheiro da sorte grande que lhes tinha saído no ano anterior. Paragens no Alentejo trazem-me agora outras memórias, que quase empalidecem as castanhas e a lampreia de ovos da D. Emília.

Deu-nos de comer, fez-nos cama na sala de jantar, o Verão  num sofá,e embrulhou em papel de estanho uma lampreia de ovos para levarmos para o Algarve. A sopa era de vagens de feijão frade, um luxo. Trouxe também de presente um molho de penas de pavão, já não sei onde estão metidas, algumas levei-as para a sala de espera da clínica, mas os doentes também gostaram e levaram-nas para casa. Agora quando vou ao Palácio, lembro-me da D. Emília, mas também me lembro de uma tarde em que iamos, não iamos e afinal fomos ouvir o Saramago na BMAG, tarde triste de sábado.

Tinhamos-nos conhecido uns anos antes durante uma acidentada viagem do Algarve para o Porto, a estrada em obras e o carro avariado ao meio dia sem sombra. O meu pai pediu boleia a um camionista para arranjar alguma solução. A minha mãe chorava sentada no banco da frente com a porta aberta,as pernas de fora, a abanar-se com o leque que começara a usar desde o início da menopausa. Eu, não me lembro o que fazia. Os homens das obras da estrada aproximaram-se e deram-nos água fresca que guardavam num jarro de latão forrado a cortiça. Bebiam por uma concha de cortiça que não encostavam aos lábios.

Passadas algumas horas que pareciam mais, chegou o meu pai numa camionete-reboque. Acomodados os quatro na cabine do reboque navegámos até Arraiolos. Chegámos ao anoitecer, A oficina já estava fechada, ficava nas margens da cidade. E nós sem carro, sem saber quando se faria o diagnóstico, quando se resolveria o problema. A minha mãe chorava, porque queria ver se tinha cartas do meu irmão, estava à espera desde que saímos do Porto, há quinze dias, e não podia esperar mais. Ele tinha ido pouco tempo antes para Houston, ia adiando a ida para a tropa, fazia o doutoramento, mas à custa de muitas saudades e preocupações de todos, expressas de forma menos dissimulada pela nossa mãe. Eu queria voltar para me encontrar com o actual namorado da época, que se viria a revelar um desastre. E o meu pai a acalmar as duas.

O Sr. Beja, dono da oficina aos berros: Não chorem, calem-se, raio de mulheres, aqui quem manda sou eu! Já disse! Não há volta a dar-lhe, Vocês hoje ficam aqui .
Aqui como? Temos de arranjar uma pensão. Podemos ligar para uma praça de táxis?
Já disse, impunha-se o Sr. Beja, ficam aqui, na minha casa! E assim foi, a D. Emíla mandou-nos entrar como se já nos conhecesse há muito tempo. Deu-nos o jantar, fez.nos duas camas, deu-nos o pequeno almoço.E tudo se resolveu. A peça avariada estava esgotada, mas o mecânico que chegou de manhã fez uma igual no torno. Resolvida a avaria regressamos a casa. A minha mãe consolada com as cartas do meu irmão, eu aparvalhada pelo estilo do namorado que tinha um honda de dois lugares, e o meu pai encantado com a eficácia do mecânico e a hospitalidade do Sr. Beja e D. Emília que ele alargava a todos os alentejanos. Tinhamos mais dois amigos.

Chegados ao Algarve, praia da Oura, ainda um retiro exótico, apenas com um hotel, o da Aldeia. Não me lembro como nos atrevemos a semelhante extravagância, férias num hotel, quarto com varanda para a piscina, o Verão com quinze meses falava pelos cotovelos, queria ir ao colo de toda a gente.

Nós encantados e vaidosos com uma menina tão esperta e tão bonita, loura de olhos azuis. A quem sai? a mim era óbvio que não era, ficava remoída, bolas! a primeira filha não tinha nada parecido comigo? talvez mais tarde alguma semelhança surgisse. Depois do pequeno almoço piscina, que ela adorava dar mergulhos e levar pirulitos. Os vizinhos da frente do Revilão também lá estavam, avó e tudo, que falava a um ritmo alucinante, o P, que mais tarde nos ofereceria concertos de piano de borla, a tocar em casa de janela aberta, a irmã de quem não me lembro, a mãe sempre low profile e o pai a cumprimentar com um aceno de cabeça muito respeitador, deviam ser novos, mas pareciam-me muito mais velhos do que nós. E hoje que é fim de ano e espero que de uma época , lembro-me das janeiras que o coro de letras vinha cantar e tocar a casa deles todos os anos. Bons tempos.

Hoje, dia 31 de Dezembro de 2009 é também a segunda lua cheia do mês, blue moon. Porque será que só me lembro da primeira parte da letra, e excluo o final?

Depois, passeio até aos Olhos de Água, procurar os olhos de água na maré baixa, sempre a encontrar um novo, ou será que mudavam de sítio?
O Verão adorava comer sopa de peixe na esplanada, mais um bocadinho de praia, mais uns banhos nas pocinhas  e uma sesta no quarto do Hotel, janela aberta, cortina corrida, tão maluca de contente que até me parecia que as buganvilias da varanda tinham perfume.