sábado, 8 de maio de 2010

As primeiras férias em família e o perfume das buganvílias - 1978



600Km até ao Algarve, o Verão com 15 meses, a 4L ainda nova.
Comprámo-la com o dinheiro que ganhei a fazer dois períodos de caixa em Mancelos: pagavam os quilómetros e o tempo perdido, mais quatro horas de consulta equivalente a trinta doentes, os que via a mais eram pagos em volumes de Português Suave ao Sr. Faria.

Pelo caminho recebia galinhas, meia duzinha de ovos, biscoitos, uma saca com batatas. Agradecia, oferecia boleia, mas não dava para ficar à conversa porque a partir das cinco e meia não se via nada e o posto não tinha luz eléctrica. O vizinho tinha, e emprestava uma gambiarra, mas para passar pela janela esta tinha de ficar aberta e o frio não se compadecia.

A sala de espera que era também a recepção, estava separada do consultório por uma parede de madeira com um metro e oitenta de altura, e acabava a um metro e vinte do telhado sem forro. Não dava também para aprofundar histórias, partilhar segredos, porque até entrarem no consultorio eram espectadores, melhor dizendo ouvintes, divertidos e crueis. Ao passar a porta transformavam-se em confidentes confiantes, esqueciam o papel de ouvintes. Eu ia falando-lhes ao ouvido, entregava por escrito os conselhos mais delicados.

Como é que daquele vale profundo saiu o Amadeu?

Aguentei o Inverno todo. Fiquei com um lençol de linho, com o cheiro do musgo, a fotografia gravada das curvas da estrada de terra e cascalho a entrar com timidez naquele lugar escondido, o Mosteiro ao fundo.

Quando juntei que chegasse para trocar o Fiat 127 esgotado, deixei. Nunca mais lá voltei, mas quero voltar.

Comprámos a 4L novinha em folha, côr de café com leite, janelas de abrir para cima, alavanca das mudanças muito engraçada.

A primeira grande viagem foi ao Algarve, uma emoção : carro novo, filha nova, ferias num hotel!

600Km não se faziam de uma assentada, e dava para visitar o Sr. Beja e a D. Emília.

Eram anos de guerra e os rapazes não a queriam. Salvo raras excepções como o do Bairro de Ramalde, filho da Espanhola, tinha a mania das fardas, de andar aos tiros. Ofereceu-se para ir para Angola, morreu em combate. Agora a rua onde morava tem o nome dele: Rua Furriel x, heroi de Angola, mas a maioria não queria a guerra e muito menos ir para a guerra.

Nessa altura havia quem tivesse contactos, fosse influente, e conseguisse livrar os rapazes, a troco de dinheiro. os pais endividavam-se, envergonhavam-se, suportavam tudo para proteger os filhos. Outros levavam-nos de carro até França, ficavam desertores, como fez o Sr. Belo ao filho, que depois casou com uma chilena. Tinha um salão de cabeleireiro na Rua dos Carmelitas, com duas paredes paralelas forradas a espelho. Enquanto a minha mãe fazia a permanente eu tentava adivinhar quantas imagens iguais mas cada vez mais pequenas conseguia contar. Foi aí que descobri o infinito.

O Sr. Beja tinha um afilhado que foi alistado. Queixou-se de dores num joelho e mandaram-no para o Hospital Militar do Porto.Um dia apareceu em nossa casa, com uma carta do padrinho, a pedir ao meu pai que o livrasse da tropa! Como havia de não o tentar depois da forma como ele e a D. Emilia nos trataram naquele dia em que o carro avariou e os homens nos deram água por uma concha ? Como às vezes iamos fazer compras ao Casão com um cartão emprestado, falou à menina da drogaria, que pediu a um sargento, e o afilhado ficou livre! o meu pai tinha a certeza que o rapaz tinha aquele joelho todo escangalhado, porque pela cunha não tinha sido . Bem, o que é certo é que foi uma alegria: o Sr. Beja veio ao Porto e trouxe-nos um conjunto de garrafa e seis copos em barro, forrados a cortiça e liquens, mais piroso não podia ser, mas manteve-se sempre em lugar de destaque no louceiro. Além disso ofereceu-nos uma ida ao Sá da Bandeira, para vermos uma revista. E a amizade ficou assim reforçada.

A viagem até ao Algarve com paragem no Alentejo, em Arraiolos, para pernoitar. A D. Emília tinha agora um restaurante na bomba de gasolina, que o marido continuava a explorar, e que foi construído com o dinheiro da sorte grande que lhes tinha saído no ano anterior. Paragens no Alentejo trazem-me agora outras memórias, que quase empalidecem as castanhas e a lampreia de ovos da D. Emília.

Deu-nos de comer, fez-nos cama na sala de jantar, o Verão  num sofá,e embrulhou em papel de estanho uma lampreia de ovos para levarmos para o Algarve. A sopa era de vagens de feijão frade, um luxo. Trouxe também de presente um molho de penas de pavão, já não sei onde estão metidas, algumas levei-as para a sala de espera da clínica, mas os doentes também gostaram e levaram-nas para casa. Agora quando vou ao Palácio, lembro-me da D. Emília, mas também me lembro de uma tarde em que iamos, não iamos e afinal fomos ouvir o Saramago na BMAG, tarde triste de sábado.

Tinhamos-nos conhecido uns anos antes durante uma acidentada viagem do Algarve para o Porto, a estrada em obras e o carro avariado ao meio dia sem sombra. O meu pai pediu boleia a um camionista para arranjar alguma solução. A minha mãe chorava sentada no banco da frente com a porta aberta,as pernas de fora, a abanar-se com o leque que começara a usar desde o início da menopausa. Eu, não me lembro o que fazia. Os homens das obras da estrada aproximaram-se e deram-nos água fresca que guardavam num jarro de latão forrado a cortiça. Bebiam por uma concha de cortiça que não encostavam aos lábios.

Passadas algumas horas que pareciam mais, chegou o meu pai numa camionete-reboque. Acomodados os quatro na cabine do reboque navegámos até Arraiolos. Chegámos ao anoitecer, A oficina já estava fechada, ficava nas margens da cidade. E nós sem carro, sem saber quando se faria o diagnóstico, quando se resolveria o problema. A minha mãe chorava, porque queria ver se tinha cartas do meu irmão, estava à espera desde que saímos do Porto, há quinze dias, e não podia esperar mais. Ele tinha ido pouco tempo antes para Houston, ia adiando a ida para a tropa, fazia o doutoramento, mas à custa de muitas saudades e preocupações de todos, expressas de forma menos dissimulada pela nossa mãe. Eu queria voltar para me encontrar com o actual namorado da época, que se viria a revelar um desastre. E o meu pai a acalmar as duas.

O Sr. Beja, dono da oficina aos berros: Não chorem, calem-se, raio de mulheres, aqui quem manda sou eu! Já disse! Não há volta a dar-lhe, Vocês hoje ficam aqui .
Aqui como? Temos de arranjar uma pensão. Podemos ligar para uma praça de táxis?
Já disse, impunha-se o Sr. Beja, ficam aqui, na minha casa! E assim foi, a D. Emíla mandou-nos entrar como se já nos conhecesse há muito tempo. Deu-nos o jantar, fez.nos duas camas, deu-nos o pequeno almoço.E tudo se resolveu. A peça avariada estava esgotada, mas o mecânico que chegou de manhã fez uma igual no torno. Resolvida a avaria regressamos a casa. A minha mãe consolada com as cartas do meu irmão, eu aparvalhada pelo estilo do namorado que tinha um honda de dois lugares, e o meu pai encantado com a eficácia do mecânico e a hospitalidade do Sr. Beja e D. Emília que ele alargava a todos os alentejanos. Tinhamos mais dois amigos.

Chegados ao Algarve, praia da Oura, ainda um retiro exótico, apenas com um hotel, o da Aldeia. Não me lembro como nos atrevemos a semelhante extravagância, férias num hotel, quarto com varanda para a piscina, o Verão com quinze meses falava pelos cotovelos, queria ir ao colo de toda a gente.

Nós encantados e vaidosos com uma menina tão esperta e tão bonita, loura de olhos azuis. A quem sai? a mim era óbvio que não era, ficava remoída, bolas! a primeira filha não tinha nada parecido comigo? talvez mais tarde alguma semelhança surgisse. Depois do pequeno almoço piscina, que ela adorava dar mergulhos e levar pirulitos. Os vizinhos da frente do Revilão também lá estavam, avó e tudo, que falava a um ritmo alucinante, o P, que mais tarde nos ofereceria concertos de piano de borla, a tocar em casa de janela aberta, a irmã de quem não me lembro, a mãe sempre low profile e o pai a cumprimentar com um aceno de cabeça muito respeitador, deviam ser novos, mas pareciam-me muito mais velhos do que nós. E hoje que é fim de ano e espero que de uma época , lembro-me das janeiras que o coro de letras vinha cantar e tocar a casa deles todos os anos. Bons tempos.

Hoje, dia 31 de Dezembro de 2009 é também a segunda lua cheia do mês, blue moon. Porque será que só me lembro da primeira parte da letra, e excluo o final?

Depois, passeio até aos Olhos de Água, procurar os olhos de água na maré baixa, sempre a encontrar um novo, ou será que mudavam de sítio?
O Verão adorava comer sopa de peixe na esplanada, mais um bocadinho de praia, mais uns banhos nas pocinhas  e uma sesta no quarto do Hotel, janela aberta, cortina corrida, tão maluca de contente que até me parecia que as buganvilias da varanda tinham perfume.

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