sábado, 8 de maio de 2010

Do Algarve a Tarifa, passando por Sevilha e Torremolinos - 1978


Uma semana na Praia da Oura, outra a viajar pelo Sul de Espanha. O sol do sul é a sério, a 4L com ar condicionado à abertura das janelas. O Verão já pedia para fazer o número um, foi a minha mãe que lhe ensinou, fizemos uma festa à volta do peniquinho com o o primeiro que não foi para as fraldas.

As fraldas eram de algodão, fui comprá-las, já com uma grande barriga ,ao armazém de uma fábrica de Pevidém, lavava-as à mão com sabão da CUF. Na Oura ficavam a corar na mesa da varanda, secavam ao sol, e voltavam a ser usadas, por precaução, apenas durante a noite. Depois descobri sabão em pó em pacotes de duzentos e cinquenta gramas, à venda numa loja pegada ao Sá da Bandeira, acho que também vendia tapetes,e passei a lavá-las à máquina. Mas há sempre alguém com gosto pelas novas tecnologias, que gosta de nos dar conselhos, e eu, feita burra, não querendo ficar atrás, comprei um pacote de fraldas de papel para levar para as férias. Triste ideia.

Na viagem para o sul de Espanha, pelo sim pelo não resolvi por fraldas à bonequinha, de papel, o que resultou num rabo vermelho e cheio de espinhas. Como tudo tem uma solução, as fraldas de papel foram para o lixo, nunca mais voltaram a entrar no carro ou em casa, nem para ela nem para as outras três estações do ano. Para resolver o problema de uma urgência miccional comprámos um pote de plástico, que estava sempre à mão, e em caso de necessidade eu saltava para o banco de trás, tirava o Verão da cadeira e passava-a para o dito, com o carro parado ou a andar, conforme a urgência e a possibilidade de estacionamento.

E lá fomos andando até Sevilha. Tanto calor só voltei a sentir vinte e um anos depois, em Death Valley. Por esse motivo houve que procurar e pagar um hotel com ar condicionado, que só condicionava o sono com o barulho que fazia, mas não arrefecia a temperatura ambiente. Pobre Verão, mesmo a dormir pedia áuua, áuua, que lhe ia dando aos golinhos, pelo bimbão.

Que guardei mais na memória desses dias em Sevilha? os biqueirões fritos que comemos na rua, estaladiços, salgados, gordurosos, um verdadeiro manjar dos deuses. Nunca mais pude repetir esse prazer.

Daí seguimos viagem. Na estrada em Nenhures e Coisa Nenhuma, uma recta de quilómetros no sol do meio dia, a 4L parou e não mais tugiu nem mugiu .Há que pedir boleia para os três e mais alguma bagagem até à bomba de gasolina que tínhamos passado há alguns quilómetros. Eu estava embrulhada num sari de seda que no ano anterior o J tinha surripiado dentro das calças, de um armazém em Andorra. Bem, não era o sari todo, porque entretanto fiz dele uma echarpe, uma túnica, um lenço e uma saída de praia, como dizem os brasileiros. Não contava ter de sair a público no interior da Andaluzia naqueles preparos. Chegados à bomba, nova boleia até uma oficina onde o mecânico fez o diagnóstico à distância, tirou uma bobine doutra 4L acidentada, trocou-a pela danificada e a questão ficou assim resolvida.

Entretanto eu e o Veão tinhamos ficado na sombra do chiringuito da bomba, dei-lhe um flan, aúa, e aguardámos. Só muito mais tarde surgiram os telemóveis, que naquela ocasião eu teria usado, sem daí obter qualquer resultado prático: os andulezes que por ali estavam esparramados, barriga a rebentar os ilhoses dos cintos , entretiveram-se o resto da tarde a dizer ordinarices e a tecer comentários à minha situação e roupagem. Acho que nunca me senti tão mal.

Resolvido o problema retomámos o caminho.

O Tor era um rapazinho simpático, educado, bem disposto e rico, conjunto de qualidades dificil de encontrar numa pessoa só, primo do Ed, e  tinha casado há pouco tempo. Foram passar ferias no Mare Nostrum, perto de Marbelha e combinámos  fazer-lhes uma visita. Hotel de luxo, pelo menos pareceu-me, piscina sobre o mar sem praia, mais mergulhos, mais pirulitos, mais comentarios simpáticos, que graciosa, que mona, e nós todos contentes.

Não voltei a ver a mulher do Tor a não ser no dia do seu enterro em Barcelos, em resultado de um acidente de automóvel, não me esqueço do Tor a chorar na igreja, mas naquele tempo eu não avaliei bem o sofrimento dele, ainda não tinha passado por perdas tão dolorosas Pouco tempo depois foi o Tor que partiu com uma leucemia, que desgosto. Lembro-me muitas vezes dele, a rir-se no Mare Nostrum, a chorar em Barcelos.

Alguns anos depois fui trabalhar para Barcelos, às quintas, dia de feira, mas isso são outras histórias, agora não quero pensar em Barcelos, nem nas viagens para Barcelos, nem nas boleias para Barcelos, nem nas manhãs de sábado nem nas tardes de terça.

Os meus pais tinham ido de autocarro para Torremolinos, e tinhamos combinado encontrarmo-nos lá com eles, iamos tentar ficar no mesmo hotel que eles já tinham marcado. Chegaram tarde, coisa anormal. O motorista tinha morrido atropelado ao atravessar uma avenida. Férias estragadas, por uma vida perdida, não há pior motivo para serem estragadas.

E as recordações do P voltaram. O P era primo dos meus primos e enquanto primo dos primos nunca tivemos grande empatia. Tinha mais um ano do que eu, andava no D. Manuel, na turma do Raul , do Pessegueiro e do Quelhas. Constituiram-se num grupo contestatário, usavam boina preta e lenço de algodão ao pescoço, o que na altura era uma grande ousadia e uma demonstração de não quererem fazer parte do mainstream, isto é da carneirada amorfa da época. Entrou para medicina em mil novecentos e sessenta e oito, como eu, e a partir daí passamos a conversar mais. No início das férias, fim dos exames da primeira época, encontrámo-nos na piscina de Leça . Ele tinha feito as disciplinas todas, queria ter férias até Outubro, porque as ia passar com a namorada francesa. Saía do Porto à boleia no dia seguinte, rumo a Espanha, e o objectivo era encontrarem-se em Algeciras, donde iriam juntos até Marrocos. Nunca se encontraram.
Acampou em Torremolinos onde por coincidência estava um médico do Porto, conhecido das mesas do Piolho, a quem contou os seus planos de viagem. Morreu nesse dia atropelado ao atravessar a mesma avenida. O médico estranhou deixar de o ver, a tenda vazia, procurou informações na polícia. Tinham um corpo por identificar , atropelado sem documentos. Foi enterrado sem avisarem a família.

No fim das ferias, regressado ao Porto, e às mesas do Piolho, contou este episódio aos que estavam presentes, entre os quais uma prima do P. E foi desta forma que a família soube da sua morte. A namorada tinha ficado à espera, pensava que ele tinha deixado de querer estar com ela. Foi a mãe, irmã da minha tia Mi, que procurou no quarto a direcção e lhe explicou o motivo da ausência.

Que pena que tenho que isto tenha acontecido. Por isso não quero ouvir falar de Torremolinos.

Do regresso a casa já não me lembro, podia inventar mas não me apetece, há tanta coisa real para contar. Só me lembro da passagem por Tarifa. Chegámos à noite, um vento de morrer. Ainda éramos amadores, não levávamos o Lonely Planet, só o Guia Michelin desactualizado, que para dormidas não presta. Demos umas voltas e acabámos por conseguir um quarto aceitável, a um preço suportável. Mas quando o homem viu que tinhamos o Verão não nos quis deixar ficar, com medo que ela molhasse a cama. Foi preciso implorar, jurar que tal não aconteceria o que se veio a verificar. De manhã fomos até à praia, não gostei, senti medo não sei de quê. Talvez pressentisse que se viria a transformar em cemitério de homens, mulheres e crianças que procuram uma vida melhor, lutam por ela, e são enganados, explorados, destruídos. Acho que sei o que sentem. Não quero voltar a Tarifa.

Naquele momento gostei das férias, mas agora já não. Poucas são as boas lembranças afinal.

Do Alentejo esqueço-me de Arroiolos e só recordo Grândola e interrogo-me sobre o porquê de ter sido posta na mesma mesa que a “retornada “ do Bairro de Francos.

 O Hotel da Aldeia é agora um monolito perdido na selva de Albufeira. E por isso nunca mais o encontrámos e não pudemos voltar a fazer ferias num hotel do Algarve. Nos Olhos de Água já não há esplanada. A dona Emilia já não faz lampreia de ovos. A praia de Tarifa é agora um cemitério.

O Tor e a mulher morreram há muitos anos, eu perdi a foto do Verão a abrir a janela da 4 L, o J já não rouba saris para me dar.

Deixei as fotos numa caixa, dentro de uma gaveta, dentro do guarda fatos da Primavera, nunca mais as vou encontrar. Talvez o Inverno as peça para fazer um projecto de uma escola numa praia do Algarve, com vento de Tarifa, onde se possa chegar sem parar em Arraiolos nem recordar Grandola, com um terraço de onde sirvam sopa de peixe e lampreia de ovos, com camaleões nas baldroegas dos canteiros.

Ou talvez vá encontrar as braçadeiras que o Verão usava para dar os mergulhos, quando for capaz de arrumar o armário do sótão onde o Outono encontrou a camisa de noite que eu usava em Prien, e que vai usar agora como vestido.

Sem comentários: