sexta-feira, 14 de maio de 2010

Luar tropical

Ontem tive um serão de cavaqueira até às tantas com alguém que conheci há uns bons 17 anos, numas férias.
No Expresso vinha um pequeno anúncio do Club dos Jornalistas, sobre uma viagem ao Brasil.
O José resolveu contactar, para saber se aceitavam inscrições de não sócios. Como tal era o caso, o programa era aliciante e o preço baixo, lá nos juntámos ao grupo.
Como nós iam também muitos outros penduras, mas todos eles tinham algum tipo de ligação à direcção ou a sócios do Club : mulher, filha, irmão, cunhado, mãe, amigo, marido....Acho eu que só nós eramos uns verdaeiros outsiders.
O programa incluía Recife, Porto de Galinhas, Natal e João Pessoa, com mais alguns passeios a partir desses locais.
Na altura o Cruzeiro ou Real, (já não me lembro), baixava de hora a hora, e como tal ninguém queria trocar muito de cada vez. Também não se usava por aquelas bandas, naqueles tempos, Visas nem Amexes. O câmbio de rua era mais favorável , para os turistas e para os cambistas informais. Com a habilidade nata dos brasucas para criarem neologismos, ali esses chamavam-se doleiros.

Grande parte dos que iam de carava connosco, talvez por estarem bem informados demais, eram muito receosos de tudo e, claro está, também em relação ao transporte de valores. Não queriam andar com dólares nos bolsos, não queriam comprar muitos Reais ou Cruzeiros (já não me lembro) de cada vez.
Havia pois um dilema colectivo: ir comprar Reais ou Cruzeiros (já não me lembro), a um doleiro favorável , levando os dólares no bolsoe e arriscando ser assaltado nos quinhentos metros que o mais próximo distava do hotel, ou cambiar no hotel, e perder alguns escudos nessa transacção.
Claro que esses alguns escudos variavam com a fúria aquisitiva das respectivas cônjuges e com a capacidade de auto-controle relativamente ao consumo de produtos locais de variada espécie, que deixo à vossa imaginação.

Graças à iniciativa privada de um jornalista com espírito emprendedor, merecedor de uma menção honrosa no concurso de “Novas Ideias de Negócio”, o pessoal passou a andar muito mais relaxado e tranquilo.
O tema da conversa de pequeno almoço deixou de ser como está o dólar, onde se poderá trocar, farão assaltos à beira do hotel, e passou a ser onde vamos hoje, alguém conhece, que fizeram ontem à noite, quem quer ir para a praia.
É que logo a meio do primeiro dia o repórter do jornal “O Crime” já tinha o negócio montado: à porta da sala do pequeno almoço recebia as encomendas, pegava nos dólares, ia a correr encontrar-se com o doleiro da sua confiança, e antes que tivessemos tido tempo de comer as mangas, o abacaxi, o mamão, o mingau, a canjica, o beiju com goiabada, com creme de leite, com manteiga, o cuscuz, as panquecas, o queijo grelhado, os pãezinhos de queijo, e bebido o suco de acerola, de maracujá, de umbu, e o café, já ele estava de volta, com os bolsos do colete de fotógrafo recheados de notas de Reais ou Cruzeiros (já não me lembro), a um câmbio intermédio entre a candonga e o oficial.Que caramba, não gostei de me lembrar de jornalistas com colete de fotógrafo.

E lá íamos todos em manada dar continuidade ao nosso plano: aproveitar ao máximo o investimento.
Vários dias, quase todos, havia um passeio de autocarro, com ar condicionado, guia local, e hora marcada para saír. Ou melhor, havia dois, dado o número de excursionistas.
Uma guia era nova, gira e simpática a outra era velha, feiosa , simpática e muito profissional.
Claro que o grupo se dividiu: num autocarro os que tanto se lhes dava se era feia ou bonita ( ie, mulheres, e casais...) e no outro os que preferiam uma guia girassa ( eram os mais numerosos).
A coisa complicou-se quando também foi preciso dividir o grupo entre fumadores e não fumadores, entre os pontuais e os que chegavam sistematicamente atrasados, entre os que enjoavam e não enjoavamam, etc.
O que dificultava mais a coisa é que havia alguns que acumulavam várias condicionantes:eram parte de um casal, mas preferiam a girassa (“a gorda não é tão culta”), chegavam sistematica tarde, mas tinham de ocupar o lugar da frente porque enjoavam, eram fumadores mas queriam ir no autocarro dos não fumadores a fumar, porque não gostavam do cheiro dos cigarros dos outros.

Uma das penduras era economista, trintona, solteira, loura mas pintava a risca de preto, ia com a mamã, conversava com a mamã, comia com a mamã, ia no banco ao lado da mamã, ficava na praia com a mamã.. Uma manhã, que eu sou muito sensível aos fusos horários, levantei-me às cinco e resolvi ir para a praia, que estava ainda deserta. Enganei-me. Ao chegar perto dos últimos arbustos ouço uns sons humanos misturados com as ondas, e qual não é o meu espanto veja a loura ás cambalhotas na rebentação, com um companheiro de viagem , que agora é crítico de arte.
Ainda bem que não obrigaram a mamã a ir para a praia tão cedo, mas eu achei melhor não mostrar que também tinha insónias, voltei para trás e fui descansar mais duas horitas.

O Mário trabalhava para a Lusa, e dizia que ia em trabalho para investigar o caso de um portugues que tinhga desaparecido no Rio de Janeiro, que toda a gente sabe que é mesmo ali ao lado do Rio Grande do Norte. Naquela altura era uma pessoa com dificuldade em resistir a tentações, como tantos que eu conheço e já conhecia.
Vai daí, num jantar oferecido, toca a comer camarões, aos quais já sabia ser alérgico. No dia seguintre de manhâ o companheiro de quarto veio pedir-nos se o podíamos ir ver, porque estava todo inchado e com dificuldade em respirar. . Não sei como, mas já sabiam que tinham dois médicos a bordo.
Realmente estava esquisito, com um grande edema da face , que poupava o lábio inferior e o queixo. Já tinha feito o diagnóstico, queria apenas remédio rápido, porque queria ir ao passeio que devia começar dali a quinze minutos.
Como não fui capaz de o demover de ir para o calor, apanhar sol ,disse-lhe que tinha de tomar uma injecção intramuscular de cortisona, além doutras medidas.
E lá fomos nós para o passeio com aquele doente por tratar. Avisado o motorista, paramos numa localidade de risca ao meio, junto da farmácia, para adquirir o fármaco, a seringa e a agulha.Aí o Mário começou a tremer, se tinha mesmo de ser injecção, se doía, se a sabia dar, se ia doer, que era alérgico a injecções, e todas essas cenas a que já estava habituada a ver em alguns doentes.
Tranquilizei-o o melhor que soube, e o rapaz da farmácia disponibilizou os fundos para fazer a administração da dita injecção.
Os fundos eram pouco fundos, e estavam ocupados com estantes tipo dexion, cheias de medicamentos. Assim sendo não dava para deitar o paciente, olhe, vai mesmo em pé, baixe as calças se faz favor. Ele assim fez, ficou a segurá-las com uma mão, não fosse baixá-las mais do que era preciso, e com a outra mão a segurar a estante.
Espeto a agulha no sítio certo, e de imediato o Mario larga as calças, não larga a estante, e cai redondo no chão com os medicamentos e a estante por cima, a agulha , a seringa e eu por trás.

Bem, o meu início de actividade clínica no Brasil foi um bocado caricata .
Do Recife fomos para Natal, mais peripécias com o hotel, em frente à praia interior e fracote, aquele grupo de pelintras no qual nos incluo a quererem um hotel no mínimo de quatro estrelas, e toca mudar para outro, depois da guia, a girassa, se ter desfeito em prantos por nunca ter sido tão maltratada, dizia ela entre os soluços.
Depois do jantar, ânimos acalmados, fomos nos sentando na esplanada virada para o mar , apenas iluminada pelo luar de lua cheia, com o barulho das ondas mansas como música de fundo.
A certa altura alguém disse “luar assim, só na minha terra”, a que o Jose respondeu “ só na sua não, na minha também”, “ai isso é que não, como na minha não é de certeza”, “está enganada, na minha ainda é melhor”. Aí a iniciadora da polémica levantou-se e perguntou “ “ai sim, e onde é a sua terra?” “ São Tomé” respondeu o José, “ah, és o Zezinho? Ainda não te tinha reconhecido!”.
Já não se viam há alguns anos, mais de vinte, mas voltaram-se a encontrar num lugar longínquo, que pelos vistos lhes era familiar.

Fico sempre emocionada com estes acasos do destino, acho que são momentos mágicos, e se a dar-lhes cobertura há uma lua cheia, então milagre de certeza.

E foi assim que eu conheci a Isabel, com quem passei ontem um rico serão.

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